Precatórios: uma herança árdua
Por *Luciano Athayde Chaves
Levar anos e anos para receber um valor que lhe é devido por direito, que foi processado e julgado pela Justiça, cuja decisão foi em seu favor. Nessa situação encontram-se milhares de brasileiros, que têm a receber da União, dos estados ou dos municípios, créditos judicialmente reconhecidos. São os chamados precatórios. Um novo regime para o pagamento desses débitos está em discussão no Parlamento.
As matérias legislativas que tratam do assunto têm gerado preocupações e críticas de grande parcela da sociedade e preocupam a magistratura. Entre elas está a proposta de emenda à Constituição (PEC) n° 351/2009, que tramita na Câmara dos Deputados. A proposta prevê, entre outros pontos, a possibilidade de que os créditos sejam pulverizados no curso de muitos anos e que sejam submetidos a leilão.
Ora, é preciso que a matéria receba alguns ajustes antes de uma aprovação, sob pena de incorrermos em inconstitucionalidade e prejudicarmos milhares de credores que há anos aguardam o recebimento de seus direitos. Um exemplo dessa necessária mudança na proposta está a dispensa da ordem cronológica para os idosos. Ademais, os dramas sociais desse segmento de nossa sociedade sempre funcionam como paradigmas da ineficiência do Estado-juiz.
Há de se observar, por exemplo, que a jurisprudência dos tribunais já tem retirado da ordem cronológica os credores judiciais que sofrem de doenças graves. Essa hipótese deveria ser expandida pela reforma, mediante a positivação desse mecanismo na Constituição federal. Seria uma medida que traria um ganho ao acesso à Justiça e à cidadania.
De outro lado, não podemos negar que o Congresso Nacional, com a promulgação da Emenda Constitucional nº 30, proporcionou um dos maiores avanços para a sociedade brasileira em termos de execução, com a implantação da requisição de pequeno valor (RPV). Essas dívidas do poder público já estão sendo pagas fora do regime de precatórios (60 salários mínimos para a União, 40 para o estado e 30 para os municípios). Porém, tanto o modelo da Emenda 30 quanto o proposto para a nova regulamentação estabelecem que os entes federados podem fixar valores diferentes por atos legislativos próprios. Isso é, pelo menos em parte, um equívoco. A PEC deve instituir valores razoáveis para a RPV, já que algumas legislações estaduais e municipais chegam a estabelecer valores muito baixos, e frequentemente têm sua constitucionalidade questionada no Judiciário.
Afora isso, algumas iniciativas do Judiciário, em especial da Justiça do Trabalho, têm se mostrado eficientes para diminuir a fila dos precatórios. No estado do Rio Grande do Norte, por exemplo, quase 60% da dívida de precatórios estão negociados com os municípios e o Estado, após a implantação do Juízo Auxiliar de Conciliação e Negociação de Precatórios. Essa prática foi consolidada em diversos outros tribunais do Trabalho. Chamam-se as partes para negociar, observando as condições de liquidez dos entes públicos, geralmente resultando em parcelamentos que equacionam o problema de estoque da dívida. Esse mecanismo tem alcançado êxito entre os tribunais regionais do Trabalho e, devido ao sucesso da medida, o Tribunal Superior do Trabalho editou uma instrução normativa recomendando que todos os tribunais regionais adotem esse procedimento.
Fracionar simplesmente os precatórios, pela força da lei, como propõe a PEC 351, pode parecer um caminho mais eficiente, mas a recente trajetória do tema não nos anima. Se não enfrentarmos as causas do crescimento do estoque da dívida pública judicializada, talvez mais um parcelamento não seja bastante.
É por isso que, do ponto de vista de quem distribui justiça, cresce hoje uma grande preocupação da magistratura em enfrentar o que chamamos de situações “litigiogênicas”, ou seja, aquelas que criam as ações judiciais. O Congresso Nacional precisa dar uma contribuição, criando um mecanismo de controle para mapear e identificar quais são os problemas do Estado brasileiro que geram tanta dívida decorrente de ações judiciais.
Certamente o mais recomendável é combater a origem do problema dos precatórios, garantindo uma boa qualificação da gestão pública para que não tenhamos que lidar com o crescimento da dívida. Devemos, sim, administrar a que já existe e evitar que mais cidadãos tenham a árdua tarefa de lutar por uma herança que, infelizmente, termina no Poder Judiciário.
* Luciano Athayde Chaves, além de juiz do trabalho (RN), é presidente da Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho.