25 de fevereiro de 2014

Novo CPC: Emenda que limita penhora online é inconstitucional

Luciano Athayde Chaves

Artigo do deputado Paulo Teixeira (PT-SP), relator-geral da comissão especial do projeto de CPC na Câmara dos Deputados, publicado aqui na ConJur, em 17 de fevereiro de 2014 (clique aqui para ler), relaciona o que considera as virtudes do novo texto, que está em avançado estágio de votação no Plenário, ao tempo em que também manifesta sua discordância com a aprovação da Emenda Aglutinativa de Plenário 7 (alusiva à Emenda 614 da Comissão), que restringe a possibilidade de bloqueio de ativos do réu em duas hipóteses: em tutela antecipada quando existir risco de dilapidação, pelo devedor, de seu patrimônio; no cumprimento provisório de decisão que deferir tutela antecipada.

Para o relator, “esse destaque contempla exagerada proteção ao devedor e, por isso, lutarei para que seja excluído do projeto pelo Senado Federal, na próxima etapa do processo legislativo, ou, se isso não for possível, que seja excluído do texto, por meio de veto da Presidência da República”.

Apesar de não contar com o apoio do relator, o referido destaque foi aprovado por 279 votos (contra 102), em ordem a estabelecer a seguinte redação, a um provisório artigo 298 do novo CPC:

Art. 298. O juiz poderá adotar as medidas que considerar adequadas para a efetivação da tutela antecipada.

Parágrafo único. A efetivação da tutela antecipada observará as normas referentes ao cumprimento provisório da sentença, no que couber, vedados o bloqueio e a penhora em dinheiro, de aplicação financeira ou de outros ativos financeiros.

Da agência Câmara, colho os discursos indiretos do autor e apoiadores da Emenda:

[…] os deputados favoráveis argumentam que a Justiça abusa desse instrumento e congela preliminarmente as contas das pessoas antes de elas serem citadas. “Essa penhora hoje é motivo de falência ou de sufoco das empresas“, criticou o deputado Efraim Filho (DEM-PB). O deputado Laercio Oliveira (SDD-SE) ressaltou que a Justiça bloqueia contas de pessoas que foram sócias de uma empresa, mesmo que elas não tenham relação com a dívida.

O autor da emenda, Nelson Marquezelli, explicou que, hoje, com uma simples petição, se bloqueia saldos que uma pessoa tenha em qualquer banco. O juiz tem acesso a um sistema do Banco Central, o Bacen-Jud, que permite o congelamento das contas com um clique. “Isso é uma prática predatória“, disse.

Para o líder do PPS, deputado Rubens Bueno (PR), a penhora de contas é uma medida “violenta”, que só deve ser usada no final do processo.[1]

Colocadas, em polifonia, algumas premissas desse fato político-jurídico, creio ser possível contribuir com o debate democrático, antecipando minha opinião de que a emenda aprovada contraria o texto constitucional, na medida em que restringe um dos direitos fundamentais inerentes ao processo: o direito à efetividade das tutelas.

Quando a Constituição Federal proclama o acesso à justiça (artigo 5ª, LV) e o direito à duração razoável do processo, com o uso “dos meios que garantam a celeridade de sua tramitação” (artigo 5º, LXXVIII), reverbera para a ordem jurídica que lhe é subalterna, em razão da supremacia de seu texto — e dos valores nele impregnados —, uma ambiência de instrumentalidade à jurisdição, em ordem a colher da tessitura normativa processual e de seus intérpretes e aplicadores uma razão prática que torne concretos os comandos judiciais.

É por isso que, desde os anos 90, a ciência processual conferiu lastro teórico para as mudanças na legislação que asseguraram maior funcionalidade às tutelas de urgência, que têm transformado o sistema de justiça do Brasil, minimizando, em grande medida, as limitações estruturais que o Poder Judiciário ainda apresenta para entregar uma tutela de mérito final em prazo aceitável.

A emenda aglutinativa aprovada pelo Plenário vai de encontro a essa tendência, ao impor limites à efetividade processual, ao impor barreira para o uso dos meios de constrição judicial eletrônica de crédito (penhora on line), instrumento eficaz e de baixo custo.

Não me parece possível harmonizar essa vedação com o texto constitucional, pois este não pode ser interpretado de forma disfuncional: de um lado, proclama um Judiciário independente e eficaz; de outro permitiria o arrefecimento de suas atribuições e poderes para cumprir essa missão.

A proposta também não mostra qualquer necessidade ou razoabilidade na restrição proposta. Os discursos dos congressistas, com o devido respeito, não ultrapassam o terreno das generalidades. O sistema judiciário está dotado de mecanismos de contenção de abusos, e que são habitualmente utilizados. No entanto, não me parece ser de empírica convergência que se ajustaria com nossas demandas o simples diferimento de qualquer medida constritiva para fase de cumprimento, que se segue à sentença de mérito e/ou seu trânsito em julgado.

Causas que implicam, por exemplo, a concessão de pensionamento imediato, em tutela antecipada, decorrente de acidentes de trabalho ou doenças ocupacionais, não poderiam atingir adequadamente seus propósitos se o autor, privado muitas vezes das condições materiais para o enfrentamento do sinistro ou da enfermidade, não pudesse contar com a imediata liberação de crédito, decorrente de uma penhora eletrônica.

Presentes os pressupostos legais, não me parece que o uso dessa ferramenta pode ser considerado prerrogativa excessiva. Pelo contrário, trata-se de instrumento que chegou tarde aos magistrados. Em geral, temos uma legislação ainda muito tímida para fazer com que o Judiciário projete sua autoridade. Basta lembrar que, no Brasil, o contempt of court é compensado apenas com a possibilidade de imposição de multas, modelo que me parece insuficiente para internalizar a eficácia da ordem jurídica nos atores sociais.

Quanto à penhora eletrônica, não é de hoje que assistimos as investidas contra sua eficácia. Muitas ações no Supremo Tribunal Federal e projetos de lei já a tomaram como tema, em geral partindo-se de críticas que desaguam em assertivas desprovidas de sustentação teórica e razoabilidade.

Como qualquer medida de constrição ou ferramenta de efetividade, a penhora de ativos financeiros, por meio da plataforma Bacenjud, pode e deve merecer aperfeiçoamentos, mas na direção de sua melhoria e eficácia, não de seu amesquinhamento.

Num país, cuja taxa média de congestionamento na fase de execução dos julgados é superior a 70%, chega em hora inconveniente proposta de restringir a efetividade das tutelas jurisdicional.

Espero que, na linha indicada pelo relator-geral do novo CPC na Câmara, a modificação em destaque seja rejeitada no Senado ou vetada pela Presidência da República.

Se nada disso acontecer, ainda há o caminho do controle de constitucionalidade — concentrado ou difuso — pois evidente é a contrariedade da proposta com nossa Norma Fundamental.

Assegurar a eficácia das decisões judiciais é mais do que um objetivo, deve ser uma clara manifestação de vontade (Konrad Hesse) da sociedade brasileira.


[1] http://www2.camara.leg.br/camaranoticias/noticias/DIREITO-E-JUSTICA/461870-CAMARA-APROVA-EMENDA-AO-NOVO-CPC-E-LIMITA-BLOQUEIO-DE-CONTAS-EM-ACOES-CIVEIS.html.

Luciano Athayde Chaves é Juiz do Trabalho, titular da 2ª Vara do Trabalho de Natal, professor da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Membro do Instituto Brasileiro de Direito Processual.

Revista Consultor Jurídico, 25 de fevereiro de 2014