Ministro afirma que CLT não atende a atual realidade das relações esportivas
Com a proximidade de eventos de grande visibilidade no Brasil, como a Copa do Mundo de 2014 e as Olimpíadas de 2016, o Direito Desportivo entra em pauta, trazendo à tona a discussão de temas relacionados ao Direito do Trabalho, como o vínculo empregatício entre o atleta e o clube. Em entrevista, o ministro do TST Guilherme Caputo Bastos defende, por exemplo, uma lei específica para o futebol, pois advoga que “a CLT não cabe” nessa modalidade esportiva.
O Brasil irá receber a Copa das Confederações em 2013 e a Copa do Mundo em 2014. As atividades desportivas há muito deixaram de ser amadoras. Qual arcabouço jurídico rege as relações de trabalho entre clubes e atletas? A legitimidade para fiscalizar e a competência para julgar são de quem?
Copa das Confederações de 2013 é um campeonato comum, internacional, que o Brasil irá sediar. Já a Copa de 2014 implicou uma legislação própria, tem lei específica para ela, já promulgada (Lei 12.663/2012). Mas receio que ela seja objeto de inconstitucionalidade em algum dos seus dispositivos. É polêmica porque trata da venda de bebida alcoólica durante a Copa. Acho que se deveria preocupar mais com uma fiscalização efetiva dentro do campo, aplicar com rigor o estatuto do torcedor, do que com a venda de bebida alcoólica.
A Justiça do Trabalho só pode analisar questões que advenham do contrato de trabalho. Atletas de natação, voleibol, basquetebol, por exemplo, nenhum deles tem contrato de trabalho com o clube. As remunerações são fruto de patrocínio, de investimentos, marcas esportivas, que acabam retornando ao atleta em forma de bolsa. As pessoas perguntam muito por que nós não analisamos essas questões, e eu digo que é porque não há contrato de trabalho. É um contrato de prestação de serviços remunerada, não é de emprego. Portanto, se não há contrato de trabalho, deve ser dirimida na Justiça Comum. Os atletas são profissionais, apenas não há um contrato de trabalho. Acredito que seria mais razoável que o Sindicato dos Atletas fizesse essa averiguação. Ninguém sabe o que rege a situação desses atletas.
Qual a sua opinião sobre a prática de olheiros que buscam adolescentes em clubes do interior dos estados para levá-los para clubes profissionais?
Caputo Bastos – Essa é uma discussão que transcende um pouco a prática de futebol. Isso porque estamos tratando de crianças, e quando é assim temos de ter uma preocupação muito grande. Todo mundo se lembra do Messi, que foi levado para o Barcelona com 11 anos de idade, mas temos que ver o que cada legislação autoriza. Aqui há a Lei Pelé, que é uma legislação muito rigorosa quanto à busca de adolescentes para o clube formador. Tem de ter apoio médico, odontológico, cobrança de frequência nas escolas, entre outras exigências.
Outro dia tive notícias de crianças, em um grande clube de Minas Gerais, em que os meninos não tinham acompanhamento psicológico ou médico, eram exigidos em treinamentos exaustivos e em péssimas acomodações. Não dá para apoiar uma atitude assim. Existem no Brasil ótimos centros de formação de atletas de futebol. São caros, mas funcionam bem. Cito aqui o Centro de Formação de Cotia (SP), que gasta em torno de R$15 a R$20 milhões por ano para se manter.
O clube descobre o atleta, investe no talento, e é claro que tem de ter retorno, mas a Lei Pelé é absolutamente rigorosa em relação ao clube formador. O clube tem um percentual, que a Lei Pelé discrimina com muita clareza, sob todas as vendas que ocorrer na vida profissional do atleta. Isso vale para todos os clubes envolvidos na formação do atleta, não só aquele primeiro.
Quanto aos olheiros, penso que é uma função como outra qualquer, de alguém que tem uma visão diferente, mais experiente. Todavia, a figura do empresário ainda é vista de forma distorcida pela população. A realidade é que os atletas são muitas vezes verdadeiros artistas e necessitam de empresários, mas às vezes esses empresários extrapolam os limites, exploram os atletas e os assediam moralmente.
Antigamente o clube era proprietário do passe do jogador. Hoje as regras são outras. Como avalia o vínculo atual dos jogadores com os clubes?
Caputo Bastos- Atualmente a particularidade fica por conta do prazo do contrato, que, diferente dos trabalhadores comuns, no futebol é por prazo determinado, de no mínimo três meses e no máximo cinco anos. Antes o clube era detentor do passe. A lei dizia que ele podia negociar aquele atleta. Às vezes, o clube recusava todas as ofertas, tirava o jogador da ativa, ele só recebia sua liberdade aos dez anos de carreira ou aos 32 anos de idade.
A Lei Pelé acabou com a Lei do Passe e passou a exigir que todo contrato tivesse uma cláusula penal. Ou seja, que na transação daquele atleta seria estipulado um valor. Por exemplo, se o contrato tivesse uma cláusula penal de R$ 100 milhões, o jogador, se quisesse deixar o clube, teria de pagar a cláusula penal. Mas não era o jogador propriamente dito, era o clube que queria aquele jogador e pagava por isso. Em muitos casos, o clube pagava um salário baixo para o atleta, mas estipulava uma cláusula penal de milhões de reais. Ou seja, o clube indiretamente impedia que o atleta mudasse de clube. Então alteraram o dispositivo, acabaram com a cláusula penal.
Com a alteração da Lei Pelé, [em 2011, pela Lei 12.395], ficaram estipuladas duas cláusulas: uma indenizatória e outra compensatória. Uma paga pelo atleta ao clube, e a outra paga pelo clube ao atleta, em todos se antecipado o rompimento do contrato. Elas são pagas quando você tem um contrato de três anos, por exemplo, e, no primeiro ano, você quer rescindir. Se o atleta quer rescindir, então paga ao clube o valor estipulado; se é o clube, o clube paga ao atleta de acordo com os critérios da lei.
Contudo, há uma disparidade entre os valores estipulados para as multas. Às vezes são valores tão altos que os atletas não têm como pagar e ficam presos pelo clube, causando a mesma escravidão que havia na Lei do Passe, só que com outra roupagem.
Os contratos de trabalho dos jogadores não teriam que ser regidos pela CLT?
Caputo Bastos– Aí nós temos um princípio jurídico. Tendo uma lei geral e uma lei específica, primeiro se aplica a especial, para se aplicar a lei geral ao que sobejar. No caso do atleta, a CLT passa ser a lei geral e a Lei Pelé, a especial. A dificuldade é pensar, por exemplo, questões como férias, ou o repouso semanal remunerado. A CLT tem suas regras quanto ao trabalho nos fins de semana, mas o atleta joga nos fins de semana. Depois de uma partida no sábado, no domingo costuma ter treino de reparação, atividades típicas da prática de esporte. E quanto ao dano moral? Numa empresa, se o chefe chama o trabalhador de bobão, pode caber o dano moral. Mas num clube, se o técnico usa, durante o jogo, palavras típicas do ambiente de futebol, é diferente. O ambiente não admite muita gentileza entre técnicos e atletas, eles normalmente se tratam mais exasperadamente. Como aplicar a regra do dano moral típico do trabalhador comum? É fechar os olhos para realidade! Ainda, o que é justa causa para o atleta, o que é indisciplina, mau comportamento, etc.? A realidade é outra, completamente diferente! Como aplicar isso à relação desportiva?
Por isso eu defendo uma lei específica para o futebol. Há muita resistência a essa ideia porque muita gente acha que deveria ter a mesma lei para todo o desporto. Mas o futebol, pela sua importância, deveria ter uma lei especial, sem discriminação a qualquer outra prática desportiva. Isso porque o futebol é efetivamente o esporte mais importante, esse país respira futebol, movimenta as massas, nada se equipara ao futebol. Eu realmente acho que a CLT não cabe dentro da prática do futebol.
O número de ações de atletas profissionais na Justiça do Trabalho tem aumentado, principalmente as de jogadores de futebol. Quais seriam os motivos?
Caputo Bastos– A Lei Pelé é quem regula a situação. A demanda reprimida se dá em dois aspectos. Primeiro para aqueles atletas amadores, olímpicos, atletas sem contrato de trabalho. No futebol, hoje já está se criando a cultura de buscar a Justiça Trabalhista para reclamar direitos lesados pelos clubes. Portanto, há uma confiança de que a Justiça do Trabalho vai cuidar desses casos, resguardar os direitos frutos do contrato. Alguns casos têm ganhado destaque, como o do jogador Fred (do Fluminense) ou do ex-jogador Júnior Baiano, do Brasiliense. Normalmente essas ações envolvem grandes somas e têm grande repercussão. Tivemos o caso Oscar, com o primeiro habeas corpus na Justiça do Trabalho de atleta trabalhador. Claro que toda novidade costuma causar resistência, mas os profissionais já estão buscando a Justiça para resolução de seus problemas. Isso é bom, é sinal de credibilidade na Justiça do Trabalho.
É verdade que a FIFA proíbe de forma expressa aos clubes e atletas acionarem a Justiça Comum? E a Justiça do Trabalho?
Caputo Bastos– Esse é um assunto que tenho discutido muito, tendo em vista as normas da FIFA se sobrepujarem ao ordenamento nacional. Isso se dá muito na Justiça Comum, onde os clubes procuram decisões quanto às regras ou decisões de campeonatos. A FIFA é muito resistente a isso. Mas quanto à Justiça Trabalhista, não. Ao contrário, há até um estímulo para que esses casos trabalhistas não tenham de se socorrer amanhã ou depois dos conselhos de arbitragem da FIFA. Enfim, eles querem que essas relações trabalhistas entre clube e atleta sejam resolvidas com maior efetividade.
Os clubes fecham contratos milionários com os jogadores, e muitas vezes não são capazes de honrar. É comum os clubes atrasarem o repasse das verbas de direito de imagem e pagarem o salário pactuado. Isso é permitido? Os repasses de direito de imagem não são verbas salariais?
Caputo Bastos– Muitos clubes têm problemas em fechar as contas em relação aos salários. Existem outras duas parcelas, tratadas pela Lei Pelé, de natureza indenizatória, ou seja, não são verbas salariais. São elas o direito de arena e o direito de imagem. No primeiro caso, os clubes vendem seus jogos para uma emissora de televisão que vai fazer a transmissão, e os atletas que participaram daqueles jogos têm proporcionalmente uma divisão do montante, fazem um rateio desse montante.
Outra parcela é o direito de imagem – contrato do clube diretamente com o atleta. É um contrato particular, cível. O clube faz intermediação entre os patrocinadores. É a exploração da imagem do atleta. Muito se tem falado sobre fraude nesses casos. Suponhamos, por exemplo, que um jogador sem destaque no time ganhe R$ 200 mil por mês, e o jogador celebridade também ganha o mesmo valor. Este ganha R$ 800 mil de imagem, só que o outro também recebe o mesmo pelo direito de imagem. Ora, isso faz crer que existe fraude, pois a imagem do primeiro jogador não é explorada tanto quanto a do jogador que é celebridade, tem camisa do clube estilizada, está constantemente na mídia, faz propagandas etc. Não é razoável! Então, essa parcela direito de imagem estaria encobrindo de certa forma uma parcela do salário, ou seja, seria uma parcela salarial disfarçada.
Qual a sua avaliação sobre a Lei Pelé? Ela é melhor ou pior que a Lei do Passe?
Caputo Bastos– Sem dúvida que a Lei Pelé é melhor. A Lei do Passe era extremamente maléfica ao jogador. Antes, se um jogador tinha qualquer desavença com o treinador, ou parecia liderar o grupo, o treinador não o escalava, deixava na reserva, um caso típico de assédio moral. Hoje o profissional pode pedir a rescisão do vínculo. A situação é muito melhor. A lei deu um destaque fantástico à regularização da prática do esporte. Mas é claro que a lei não é perfeita. Ouvi outro dia isso de um parlamentar, ou seja, que lei perfeita não existe, porque no Congresso há um embate de forças, que essa foi a lei possível. Por isso, a Justiça do Trabalho deve estar preparada para trabalhar nesse vácuo, nessa lacuna, uma vez que a lei que se consegue extrair do congresso é uma lei consensual.
Quais são as principais demandas trabalhistas? O que mais se julga?
Caputo Bastos- A grande parte dos casos dos últimos anos diz respeito ao pagamento da cláusula penal. Se ambos, clube e atleta, pagavam ou se só o atleta pagava. Essas ações foram em grande quantidade até que a Seção Especializada em Dissídios Individuais do TST pacificou a matéria dizendo que só o atleta pagava. Os casos são de rescisão que não foi paga, uma multa que não foi paga, isso porque se estipulam em contrato de alguns, atletas mais conhecidos, cláusulas especiais. Atualmente estamos analisando o caso do Scheidt (ex-zagueiro do Botafogo e da seleção). Mas ressalto, esses têm uma situação bem diferente da imensa quantidade de jogadores de futebol que são esquecidos no Brasil. A gente só se lembra de cem em um milhão de jogadores.
Talvez, no futuro, as próximas demandas sejam em relação à aplicação das cláusulas compensatória e indenizatória, dos valores estipulados para as cláusulas, do percentual para os clubes de formação ou as exigências para os clubes formadores. Um problema interessante se refere ao atleta que se acidenta e fica meses afastado. Há controvérsias em relação à regra que diz que, depois de 90 dias afastado, se o atleta paga desde o primeiro dia ou se paga a partir do nonagésimo dia, quando se acidenta por conta própria, ou seja, o clube não contribuiu para isso. Diferentemente do atleta que se acidenta durante os treinos, por exemplo. Portanto, creio que teremos de seis a sete temas que vão frequentar a Justiça do Trabalho nos próximos anos.
(Fonte: Última Instância)