A magistratura e a aposentadoria – Guilherme Feliciano
O artigo “A magistratura e a aposentadoria”, de autoria do diretor de Prerrogativas e Assuntos Jurídicos da Anamatra, é destaque do jornal Correio Braziliense desta segunda (26/8).
Confirma abaixo a íntegra do artigo:
A magistratura nacional e a aposentadoria
O Senado Federal aprovou, em 6 de agosto, a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) nº 53/2011, da relatoria do senador Blairo Maggi, que altera o art. 93 da Constituição para excluir a pena de aposentadoria por interesse público do rol de sanções aplicáveis aos magistrados, além de criar uma outra sanção disciplinar — a “suspensão por até 90 dias”. Semelhante tratamento é estendido aos membros do Ministério Público, na PEC nº 75/2011, sob a mesma relatoria.
O texto trará avanços e retrocessos. Na perspectiva da opinião pública, certamente avança, ao eliminar do ordenamento uma sanção disciplinar que sempre foi interpretada como “prêmio” para o mau juiz. E, de fato, o instituto merecia ser revisto. Agora, pela redação adotada no relatório final, ele simplesmente desaparece. De outra parte, insere-se no regime disciplinar da magistratura uma figura até então desconhecida, que não terá qualquer precedente, senão em hipóteses teratológicas de intimidação judicial: um juiz poderá, por sua “conduta”, ser suspenso por até 90 dias.
Mais: omisso o texto constitucional quanto às condutas que levariam a essa suspensão, abre-se ensejo a que sejam “suspensos” inclusive por decisões que tomarem no exercício da jurisdição. Diga-se, em homenagem à transparência da informação, que a figura da suspensão já existe para o Ministério Público, nos termos da Lei Complementar nº 75; mas para 45 dias, não para 90 dias, e em casos muito bem definidos.
É preciso, ademais, fazer alguns reparos. Tão logo aprovada a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) nº 53, ouvem-se vozes acusando as associações de juízes de lutarem pela “manutenção de privilégios”. Para citar um único interlocutor, disse o senador Humberto Costa, recentemente, que as associações de juízes pautaram-se por “interesses corporativos”; que “queriam que um juiz que cometeu uma infração que não fosse grave pudesse ser aposentado compulsoriamente. Mas isso não é pena, é prêmio”. Essas afirmações, porém, fazem tábula rasa de todo o qualificado debate que precedeu a apresentação do relatório Maggi. Cabe, por isso, restabelecer a verdade histórica dos fatos.
Desde o início, a maior preocupação das associações de juízes e membros do Ministério Público era com o fim da vitaliciedade, isto é, da garantia constitucional que assegura a esses agentes públicos a permanência no cargo, até o trânsito em julgado de decisão judicial que determine a perda do cargo. E é assim não apenas pela relevância das funções que exercem, mas, sobretudo, pela natureza dos interesses que usualmente contrariam. Quando se decide à luz do direito, há sempre menor espaço para transigências de ordem política ou econômica.
Essa garantia não admite relativizações, mesmo no texto da Constituição, por estar imbricada com princípios sensíveis como o da separação dos poderes da República e o da garantia dos cidadãos a um juiz imparcial e independente. Isso já foi dito pelo Supremo Tribunal Federal (por exemplo, na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 98 e na ADI nº 3367), como também sufragado pela ONU (Doc. Nº A/Conf. 144/28), quando aprovou os princípios básicos relativos à independência da Judicatura. E, de fato, a PEC nº 75 eliminava a vitaliciedade, em relação ao Ministério Público; enquanto a PEC nº 53, por sua vez, ameaçava-a, para os juízes, ao dispor indiscriminadamente sobre uma pena de “demissão” que mal se explicava.
Quanto à pena de aposentadoria, entendíamos que, de fato, não poderia mais servir ao cômodo afastamento de juízes e promotores que praticaram delitos graves, como são os crimes contra a administração pública (peculato, concussão, corrupção etc.), os crimes hediondos e os delitos equiparados. Mas, por seu lado, entendíamos que a figura ainda tinha uma razão de ser: salvaguardar, em certos casos de menor gravidade (por exemplo, juízes incontornavelmente improdutivos), a condição previdenciária de quem, tendo agido mal, nada obstante recolheu contribuições regulares ao sistema previdenciário pertinente. Daí porque propúnhamos que a figura fosse, sim, drasticamente restringida; mas não extinta. A ideia não vingou. O principal desatino, porém, foi debelado no Senado. A vitaliciedade resiste, uma vez mais. Não sem grande resistência.
Resistência “corporativa”? Passemos, então, ao campo da semântica. Se resguardar a Constituição é corporativismo, talvez sejamos corporativos. Se preservar a independência funcional da magistratura é corporativismo, que nos valha a pecha. Resta-nos a serenidade solitária dos ideais maiores.
Guilherme Feliciano, Juiz titular da 1ª Vara do Trabalho de Taubaté, é diretor de Prerrogativas da Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho(Anamatra) e professor associado da Faculdade de Direito da USP