4 de maio de 2022

OPINIÃO: Equidade de gênero no âmbito da Justiça do Trabalho

Equidade de gênero no âmbito da Justiça do Trabalho
Apesar dos avanços femininos inegáveis na carreira, ainda existe um caminho a percorrer

igualdade de gênero
Crédito: Pexels

O mês de março de cada ano tem sido dedicado à mulher, sendo considerado um momento adequado para refletir, com maior ênfase, sobre a desigualdade de gênero e a sobrecarga física e psíquica que recai sobre elas. Nenhuma sociedade pode prescindir dessa autorreflexão que implica assegurar a dignidade humana, não só nas relações entre particulares, mas também nas relações pessoais entre os integrantes dos Poderes da República.

Neste contexto, torna-se necessária a análise da situação também dentro das estruturas do ramo do Poder Judiciário, que é chamado, diuturnamente, a resolver demandas que discutem também a discriminação de gênero nas relações de trabalho, embora muitas vezes essa questão esteja subjacente a outras.

A Justiça do Trabalho, ao longo dos seus 80 anos da existência, observou profundas alterações sociais, históricas e legislativas no que diz respeito à exaltação da igualdade como uma ordem objetiva e de valor vinculante, a ser observado pelo Estado e entre particulares. Inicialmente instituída como integrante do Poder Executivo, e posteriormente integrando efetivamente o Poder Judiciário, em sua composição original contava apenas com homens, sem a presença de mulheres[1].

O mundo mudou. Atualmente, a igualdade entre homens e mulheres constitui direito fundamental, previsto no art. 5º, I, da CF/88. São muitas as mulheres que integram as fileiras da magistratura laboral, desde o ingresso da primeira delas[2]. A chegada ao órgão de cúpula demoraria várias décadas: a primeira mulher a ser nomeada para o TST foi Cnéa Cimini Moreira de Oliveira, em 1990, marcando a vanguarda da Justiça do Trabalho: primeira mulher a integrar um tribunal superior no Brasil e segunda no mundo a ocupar essa posição[3]. Hoje, na Justiça do Trabalho, 45% dos integrantes de primeiro grau são mulheres, além de 37% do segundo grau e 22% no seu Tribunal Superior[4].

Não obstante, importante lembrar que “a igualdade não é um dado, mas um construído” (Hannah Arendt). Passados 80 anos, ainda se observa que existem diferenças de representação dos gêneros, em especial nos tribunais regionais e, mais destacadamente, nos tribunais superiores. Ainda que o acesso aos tribunais regionais se dê mediante promoções alternadas por merecimento e antiguidade, em atenção ao princípio da igualdade material a lei prevê — e demanda — proteções especiais à mulher. Medidas legislativas, profícuas quanto ao tema, são o primeiro passo para mudar a cultura, ainda enraizada e manifesta pelos números, da inferioridade social feminina.

No contexto internacional, destacam-se como relevantes diversas convenções da Organização Internacional do Trabalho (OIT) que têm por escopo a proteção da mulher no mercado de trabalho: Convenção no 3, de 1919, de proteção à maternidade, assunto que foi revisado em 1952 pela Convenção 103 e novamente em 2000 com a Convenção 183; Convenção 100, de 1951, sobre a igualdade de remuneração; Convenção 111, de 1958, sobre a discriminação no emprego e na profissão; a Convenção 156, de 1981, sobre trabalhadores e trabalhadoras com responsabilidades familiares; e a de nº 190, de 2019, sobre a eliminação da violência e do assédio no mundo do trabalho, que tem um forte viés voltado à questão de gênero, e que reconhece expressamente que o problema repousa mais sobre as mulheres que sobre os homens. Não se pode esquecer, ainda, a Convenção da ONU sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (CEDAW), de 1979, marco importante na luta pela equidade de gênero.

Políticas públicas são também importantes, sendo que as políticas públicas judiciárias representam destacado mecanismo de ampliação do acesso à Justiça, e ao longo do tempo algumas atividades institucionais evoluíram para ações afirmativas e normativos próprios, como o Programa Trabalho Seguro, do TST. E as políticas judiciárias exitosas têm o condão de reverberar externamente, acabando por influenciar a agenda de outros poderes e engajar mais atores sociais.

O Conselho Nacional de Justiça (CNJ), na esteira da Agenda 2030, que estabelece a necessidade de incremento à paridade de gênero como o 5º Objetivo de Desenvolvimento Sustentável (ODS) da Organização das Nações Unidas (ONU), vem estabelecendo normativas para efetivação dessa isonomia material que também podem ser classificadas como políticas públicas. Nesse contexto, por meio da Resolução 255/2018, instituiu a Política Nacional de Incentivo à Participação Feminina no Poder Judiciário, além de outras políticas públicas para a igualdade de gênero estimuladas, v.g., pelas Resoluções 252/2018, 254/2018, 270/2018, 248/2019, 351/2020, 376/2021 e 418/2021, bem como Recomendações 79/2020, 42/2021, 85/2021 e 128/2022.

Em iniciativa pioneira, a Justiça do Trabalho agora se propõe a refletir sobre o incremento da equalização das questões de gênero dentro da sua magistratura, visando atuar na correção de disparidades estruturais e também obter um panorama dos avanços alcançados em sua existência. Passo importante neste sentido foi a instituição do Observatório Excelências Femininas, através do Ato Conjunto Presidência-ENAMAT Nº 001/2022de 7 de março, editado às vésperas do Dia Internacional da Mulher. Criado com o propósito de inserir um olhar institucional a respeito da participação das mulheres na Justiça do Trabalho, propiciar reflexões sobre o reconhecimento profissional das magistradas, bem como permitir sejam observadas, analisadas e sugeridas ações concretas em prol da igualdade de gênero no Judiciário, o Observatório contará com o apoio técnico da ENAMAT.

O nome do Observatório (Excelências Femininas) foi propositadamente escolhido para indicar que se inicia com um objetivo específico, de mapeamento das questões relativas à equidade de gênero dentro da magistratura trabalhista. A escolha considerou o uso do termo excelência considerando tanto o pronome de tratamento direcionada à autoridade judiciária, como o substantivo feminino que indica a qualidade de tudo que é excelente, que tem um grau elevado de qualidade. A isso que se propõe o observatório: colocar luz sobre os méritos femininos da magistratura laboral, observar o implemento das políticas públicas existentes e apontar como elas podem e devem atuar em igualdade de condições com os homens na carreira.

A instauração do Observatório indica a sensibilidade voltada ao estudo das diferenças ainda existentes, a fim de que possam ser planejados os próximos movimentos para o avanço contínuo em direção à equidade, sem descurar da avaliação dos avanços já existentes. O ato que instituiu o Observatório tem o mérito de ser programático e descreve suas ações e competências. Seus objetivos são claros e factíveis: i) orientar as escolas judiciais para que incluam em suas agendas de formação continuada eventos voltados à questão de gênero, segundo o modelo da igualdade de direitos; e ii) realizar levantamento de dados concernentes à questão de gênero na carreira das magistradas, com o escopo de mapear avanços e assimetrias, que embasarão a implementação de medidas pontuais que possibilitem o equilíbrio estrutural nas relações de poder.

Como início de suas atividades o Observatório está coletando dados para apresentar um recorte evolutivo da presença das mulheres na magistratura trabalhista, o que será feito com base em informações que estão sendo prestadas pelos 24 tribunais regionais do trabalho. Outro dado a ser apurado é quanto à existência de políticas de gênero que tenham sido estabelecidas no âmbito dos mesmos regionais, buscando iniciativas de sucesso que possam ser compartilhadas e replicadas nacionalmente.

Certamente os avanços femininos na carreira são inegáveis, mas as dissimetrias persistem. Ainda existe um caminho a percorrer, o que enfatiza a importância e a necessidade de refletir sobre o tema, estudar as realidades existentes e contribuir para a superação dos obstáculos, colocando sob a luz o alto grau de excelência das magistradas do trabalho brasileiras, que, como todas as mulheres, merecem ocupar o justo espaço em seu campo de atuação.

MORGANA DE ALMEIDA RICHA – Ministra do Tribunal Superior do Trabalho (TST). Doutora e mestre em direito constitucional pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Graduada em direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Coordenadora nacional do Observatório Excelências Femininas do TST.

ANA PAULA SEFRIN SALADINI – Juíza titular da Vara do Trabalho de Cambé (PR). Vice-coordenadora da Escola Judicial do TRT-9, gestão 2021-2023. Mestra e doutoranda em ciência jurídica (UENP – Jacarezinho). Gestora nacional do Observatório Excelências Femininas do TST.

TEREZA APARECIDA ASTA GEMIGNANI – Desembargadora federal do Trabalho e doutora em direito do trabalho pela USP. Membro da Academia Brasileira de Direito do Trabalho. Representante da ENAMAT no Observatório Excelências Femininas do TST.


[1] As fotografias podem ser observadas na linha do tempo disponibilizada no site do TST.

[2] Discute-se essa primazia, ora atribuída a Sônia Taciana Sanches Goulart, nomeada como juíza suplente do então Conselho Regional do Trabalho da 1ª Região, em 1943, e posteriormente aprovada em concurso público em 1956, com posse em 1960, como juíza substituta no TRT da 1ª Região, ou se esse marco deve ser dado a Neusenice de Azevedo Barretto Küstner, aprovada em concurso público na 2ª Região em 1955 e com posse em março de 1957.

[3] Veja mais a respeito da história no site do TST: https://www.tst.jus.br/primeiramagistrada-tst, acesso em 21 mar. 2022.

[4] Os dados de primeiro e segundo graus foram extraídos pela ENAMAT em consulta ao Painel BI do CNJ – Produtividade mensal. Os números do BI são flutuantes, pois alimentados constantemente, e variáveis em razão da data da consulta ao banco de dados. Essa pesquisa foi realizada entre os dias 01 e 02 de março de 2022. Os dados do TST Os dados foram coletados com base em consulta ao site do Tribunal. Maiores informações podem ser obtidas no Painel BI, disponível em:
https://paineis.cnj.jus.br/QvAJAXZfc/opendoc.htm?document=qvw_l%2FPainelCNJ.qvw&host=QVS%40neodimio03&anonymous=true&sheet=shPDPrincipal