24 de agosto de 2017

Opinião – A Reforma: uma promessa vã

A Reforma: uma promessa vã

Ricardo Tadeu Marques da Fonseca[1]

 

  1. Introdução

Sob o pretexto de melhorar as condições de empregabilidade no Brasil, o Governo fez votar as leis 13.429 e 13.467. A primeira ampliando as hipóteses de trabalho temporário e disciplinando a terceirização, e, a segunda, empreendendo profundas alterações à Consolidação das Leis do Trabalho para, segundo seus idealizadores, estimular os empregadores, os quais têm “a caneta na mão” para o registro dos trabalhadores na carteira do trabalho[2].

Nesse estudo busca-se demonstrar que o efeito real das medidas legais adotadas será a dificultação de acesso a direitos, bem como o desestímulo à empregabilidade.

Tratar-se-á do elastecimento da jornada de trabalho, dos efeitos da intertemporalidade da lei, da precarização de direitos no campo e da terceirização generalizada que afetará diretamente a massa salarial dos trabalhadores e, consequentemente, sua capacidade de consumo, bem como o eventual prejuízo direto às cotas sociais de aprendizes e de pessoas com deficiência.

É claro que estamos em fase inicial de apreensão das leis aprovadas, o que impede maior aprofundamento na pesquisa doutrinária e jurisprudencial, até porque grande parte da jurisprudência trabalhista construída ao largo de muitos anos foi especificamente atingida e alterada pelas normas em comento.

  1. Elastecimento do tempo de trabalho

Algumas incongruências são visíveis em relação à promessa de que se cuida sendo de se observar, inicialmente, que se estimulam situações de elastecimento da jornada de trabalho, cujas formas transcendem aos lindes constitucionais.

A fixação da jornada de doze por trinta e seis por acordo individual, o banco de horas também por acordo individual ou tácito, o qual poderá ser cumulado a horas prorrogadas, bem como o contrato a domicílio sob a versão atual do teletrabalho, sem limite de jornada, criam situação absolutamente avessa ao fim do desemprego protagonizado.

O Direito do Trabalho, como se sabe, é um conjunto de princípios e regras que revelam uma política pública de trabalho e emprego, na medida em que impõe limites à autonomia privada, submetendo-a a normas de ordem pública. A decisão do legislador de estimular o elastecimento da carga horária diária e semanal de trabalho, por acordo individual, além de ferir o que dispõe o art. 7º, XIII e XIV, da Constituição, que estabelece que tais limites só possam ser moldados ou elastecidos pela autonomia privada coletiva, impõe um grande desestímulo à contratação de novos trabalhadores, pois, por óbvio, as horas extras, cujo pagamento será certamente objeto de grandes discussões na Justiça do Trabalho, por mais onerosas que pareçam, são mais econômicas que a contratação de trabalhadores.

Ainda que se admita que a negociação coletiva poderá estabelecer o banco de horas e a adoção do regime doze por trinta e seis, como ocorre hoje, não se vislumbra aconselhável aos sindicatos adotar esses sistemas pela negociação coletiva, pois a acumulação de regimes de compensação e prorrogação trará grande risco à saúde dos trabalhadores, o que certamente não condiz com a missão histórica dessas organizações de classe das categoriais profissionais. Identificarão, conforme se espera, fator de desestímulo à empregabilidade.

  1. Intertemporalidade

O efeito da aplicação da lei no tempo também será um fator de instabilidade nas relações entre capital e trabalho, porque as novas regras não afetarão os contratos em vigor, na medida em que impliquem supressão de direitos. Elas começarão a valer apenas para os novos contratos. Trata-se do princípio constitucional de que a lei nova deve preservar os direitos adquiridos, previstos no art. 5º, XXXVI, da Constituição. Não se argumente que o fato de que o contrato de trabalho se desenvolva por trato sucessivo autorizaria a vigência imediata da lei em relação aos pactos em andamento, mesmo reduzindo direito, porque o princípio do respeito às condições mais benéficas está estampado nos arts. 468 e 444 da CLT, os quais encontram respaldo no caput do art. 7º da Constituição.

Embora as normas celetistas aqui indicadas façam menções apenas às alterações contratuais, tornando-as nulas quando estabelecidas contra a proteção legal mínima, nada indicando acerca de alterações legais, propõe-se uma leitura desses dispositivos em harmonia com o princípio constitucional da norma mais favorável constante do art. 7º, que, segundo a doutrina clássica de Amauri Mascaro Nascimento, adotada por Maurício Godinho Delgado, apresenta uma tríplice perspectiva, traduzindo-se como princípio de hierarquia das leis, de interpretação das leis e de criação das leis[3].

Justamente na esfera da criação das leis é que o princípio em questão soma-se à norma constitucional do art. 5º, XXXVI e outorga aos artigos celetistas supra alcance de vedação do retrocesso também na esfera legal.

Estamos em um momento da história em que nunca se viu tamanha imposição legal de impedimentos de acesso a direitos trabalhistas. Segundo 17 Ministros do TST, as leis em questão eliminam 25 direitos dos trabalhadores e colocam em risco o acesso a mais 23 institutos de proteção trabalhista, sem falar nas normas processuais que acarretam grande desequilíbrio em desfavor dos trabalhadores nas ações trabalhista. O documento em questão menciona 11 alterações prejudiciais nessa esfera[4].

O grande impulso que se busca dar à negociação individual e à negociação coletiva como prevalentes sobre a lei apanha a classe trabalhadora em momento extremamente desfavorável. Estamos em uma quadra da história em que os sindicatos profissionais e os trabalhadores nada têm a negociar, diante do imenso exército de reserva de catorze milhões de desempregados, a elevar a condição do empregador à posição leonina no momento da tão almejada negociação.

 Interessante aqui trazer à baila a posição do Tribunal Superior do Trabalho, em situação semelhante, de muito menor monta, porém, ao analisar os efeitos da Lei 12.740/2012, que reduziu a base de cálculo do adicional de periculosidade dos eletricitários a partir de sua vigência, ao estabelecer que passaria a não ser mais calculado sobre o conjunto remuneratório, como previa a Lei 7.369/1985, e sim sobre o salário-base. A Corte Superior Trabalhista editou a Súmula 191, item III, que assim se lê:

Súmula nº 191 – ADICIONAL DE PERICULOSIDADE. INCIDÊNCIA. BASE DE CÁLCULO (cancelada a parte final da antiga redação e inseridos os itens II e III) – Res. 214/2016, DEJT divulgado em 30.11.2016 e 01 e 02.12.2016:

III – A alteração da base de cálculo do adicional de periculosidade do eletricitário promovida pela Lei nº 12.740/2012 atinge somente contrato de trabalho firmado a partir de sua vigência, de modo que, nesse caso, o cálculo será realizado exclusivamente sobre o salário básico, conforme determina o § 1º do art. 193 da CLT”.

Os precedentes do referido inciso, que foi acrescido em novembro de 2016, mencionam justamente o respeito ao direito adquirido, consubstanciado nas condições contratuais suscitadas na vigência de lei revogada, cujo conteúdo era mais benéfico que a nova lei. Mencionam, também, o princípio da retroatividade mínima, cuja origem jurídica é justamente o respeito ao direito adquirido, mesmo em contratos de trato sucessivo estabelecido sob a égide de lei revogada que assegurava direitos quando da pactuação para preservá-la íntegra no tempo.

Os efeitos sociais do respeito ao direito adquirido, na presente conjuntura, poderão gerar dispensas para substituição dos trabalhadores protegidos pela sistemática trabalhista anterior à reforma, a apontar mais um risco sério de desestabilização das relações entre capital e trabalho e desemprego.

 

  1. O trabalho rural

A eliminação das horas in itinere certamente não acarretará empregabilidade no meio rural. A fixação do trabalhador rural no campo tem sido um grave problema estrutural no Brasil desde os anos 60, com o início da industrialização e com o Estatuto do Trabalhador Rural, que tinha essa finalidade.

A Lei 5.889/73 assegurou uma série de direitos aos trabalhadores rurais que estavam, até então, à margem da proteção celetária, o que se efetivou a partir da igualização absoluta de direitos entre eles e os trabalhadores urbanos com a Constituição de 1988.

As horas in itinere foram decorrentes da aplicação extensiva do art. 4º da CLT, pois o trabalho rural, ocorrido em locais de difícil acesso, somente se faz possível com o transporte de trabalhadores proporcionado pelo empregador. Se, por um lado, isso propicia a atividade em si, por outro, obriga o trabalhador a atender os desígnios do empregador, colocando-se a postos para a consecução da atividade econômica bem antes do momento do início da efetiva prestação de serviço.

 A consagração jurisprudencial das horas in itinere, pela Súmula 90 do TST, posteriormente convolada em lei, em 2001, com a edição da Lei 10.243, visava estimular a permanência do rurícola nessa atividade, proporcionando-lhe um ganho adicional, em razão dos grandes esforços que o labor implica e, em regra, com baixo nível remuneratório. Há, aqui, dessa maneira, mais um desestímulo ao emprego rural, no que toca aos trabalhadores que provavelmente desencadearão um novo êxodo rural.

 

  1. A forma em detrimento do conteúdo contratual

Causa espécie o apego exacerbado à autonomia privada, submetendo o contrato realidade, que desde Mario de La Cueva edifica-se em princípio basilar do Direito do Trabalho, a uma aparente prevalência da forma sobre o conteúdo.

O art. 442-B da CLT enuncia que a adoção dos aspectos formais da contratação de trabalhadores autônomos impedirá o reconhecimento do vínculo empregatício. A intenção é clara, mas o resultado é altamente questionável, porque o novo artigo em questão deve ser lido em consonância com o art. 442 que introduz o capítulo IV da CLT, onde se regulamenta o contrato individual de trabalho, o qual evidencia o aspecto objetivo da relação de emprego, sempre que seus elementos estiverem presentes.

A leitura correta do novo dispositivo, desse modo, do ponto de vista sistemático, impede a prevalência da forma sobre o conteúdo, porque o que se estabelece no artigo que introduz o capítulo submete a regularidade da contratação formal dos autônomos à inexistência da subordinação jurídica ou estrutural, bem como dos demais elementos do vínculo de emprego, como onerosidade, pessoalidade e continuidade na prestação de serviços.

A se admitir o contrário, estar-se-ia imprimindo ao Direito do Trabalho uma conotação mais conservadora que o próprio Direito Civil atual delineia aos contratos, na medida em que o art. 421 do Código estabelece, desde 2003, a prevalência da finalidade social do contrato em detrimento da forma, diferentemente do que pretende o art. 442-B em comento.

Há que se invocar aqui, ademais, o art. 9º da CLT, cuja influência se deu, nitidamente, também no novo Código Civil, ao inaugurar um novo diploma civilista a prevalência da boa-fé objetiva nos contratos, tal como prescreve o art. 422.

Tudo indica, portanto, que o Direito do Trabalho, construído há décadas, há de superar os equívocos da reforma em seu exacerbado apego à autonomia privada, superando-se a literalidade em favor dos valores que erigem o ramo obreiro do Direito, conforme os princípios ainda mantidos na Constituição do Brasil e na própria CLT.

Há de prevalecer a correta leitura teleológica e sistemática, portanto, do novo artigo celetista aqui analisado. Parece-me que ele estabeleceu o ônus da prova para a empresa de demonstrar a correta formalização do contrato dos autônomos, para gerar mera presunção relativa a seu favor, a qual cederá diante da prova dos elementos da relação de emprego.

Já tive a oportunidade de vivenciar situação semelhante, no momento em que atuava no Ministério Público, e combati a literalidade do parágrafo único do art. 442 da CLT, que sonegava o vínculo de emprego a trabalhadores cooperados, terceirizados por empresas tomadoras de seu trabalho. As chamadas cooperativas de mão de obra foram afastadas pela Justiça do Trabalho para que prevalecesse o conjunto de normas e princípios trabalhistas sobre a literalidade daquele dispositivo.

A intenção, talvez, do legislador, seja aumentar o engajamento de trabalhadores sem vínculo laboral nas empresas em larga escala, o que acarretaria, no entanto, fragilização das normas de proteção à higiene e à segurança no trabalho, aumentando os riscos e os custos da previdência social, bem como a redução de arrecadação no FGTS – Fundo de Garantia do Tempo de Serviço, e de ganhos como férias e 13º salários, os quais se constituem como verdadeiras poupanças em favor dos trabalhadores.

 

  1. Terceirização

Há que se equacionar, ademais, a perturbadora questão da terceirização generalizada das atividades-fim e meio trazidas pela lei 13.429 e reforçada pela Lei 13.467. A se admitir a terceirização com a amplitude propugnada, como ficam as cotas de contratação obrigatória de aprendizes, de 5 a 15% do efetivo das empresas que apresentem funções passíveis de formação profissional? E as cotas para contratação de pessoas com deficiência, que são obrigatórias nas empresas com mais de cem empregados? Bastaria então que uma empresa quebrasse esses referenciais, terceirizando empregados apenas para não ser compelida a contratar aprendizes ou trabalhadores com deficiência.

Há de se indagar, aliás, se o valor social do trabalho e da livre iniciativa, insculpido no art. 1º da Constituição, como princípio fundante da República, e corroborado pelo art. 170, que fixa a função social da propriedade, seriam compatíveis com a ideia de que uma empresa terceirizasse todos os seus trabalhadores, estabelecendo com eles uma relação de mercancia do trabalho, contratando-os com salários inferiores aos da categoria profissional e assumindo apenas responsabilidade subsidiária diante da inadimplência das empresas prestadoras.

Veja-se que não se trata apenas de preservarem-se as cotas de pessoas com deficiência e aprendizes, há necessidade de se limitar a comercialização da força de trabalho no Brasil. O princípio da dignidade da pessoa, cumulado ao valor social do trabalho e da livre iniciativa, bem como ao da função social da propriedade, deverão lastrear a ponderada jurisprudência da Justiça do Trabalho.

São cerca de 450.000 aprendizes e 420.000 trabalhadores com deficiência que veem ameaçadas as suas oportunidades. Há que se exigir das empresas que venham a adotar a terceirização generalizada, o respeito às cotas em questão, as quais não foram submetidas à negociação individual ou coletiva. São leis de ordem pública que devem ser cumpridas.

  1. Conclusão

Nesse contexto, as leis em análise desequilibram as relações entre capital e trabalho no Brasil, solapando a construção jurisprudencial e doutrinária de décadas e subjugando a classe trabalhadora. O que se esperaria seria, no mínimo, uma reforma com ganhos recíprocos e uma política consciente de estímulo aos empregos, com a redução das cargas semanal e diária de trabalho, como se deu na França e na Alemanha.

A pauta que lastreou a reforma vem sendo proposta pela Confederação Nacional das Indústrias – CNI há alguns anos, as chamadas 101 Propostas para Modernização Trabalhista, e foram amplamente acolhidas pelas leis em apreço.

Os contratos precários de trabalho, como o tempo intermitente e de autônomos em larga escala, bem como os terceirizados sem equivalência salarial com as respectivas categorias profissionais, também afetarão profundamente a capacidade de consumo da classe trabalhadora, a desaquecer a economia e afetar profundamente a empregabilidade.

O que se observa, portanto, é uma contradição interna no projeto e insustentável em relação às promessas alardeadas.

[1] Desembargador do Tribunal Regional do Trabalho do Paraná, ex-Advogado, ex-Procurador Regional do Ministério Público do Trabalho. Especialista e Mestre em Direito do Trabalho e Processo do Trabalho pela Universidade de São Paulo e Doutor em Direito das Relações Sociais pela Universidade Federal do Paraná.

[2] http://www.gazetadopovo.com.br/politica/republica/juiz-aviador-e-tenista-amador-conheca-marlos-melek-o-pai-da-reforma-trabalhista-5hk39ahulh1y9yho5rjkw1qu2. Acesso em 14/08/2017.

[3] DELGADO, Maurício Godinho. Curso de direito do trabalho. 16 ed. São Paulo: LTr, 2017. p. 214-216.

[4] http://www.conjur.com.br/2017-mai-25/17-ministros-tst-assinam-documento-reforma-trabalhista. Acesso em 15/08/2015.