21 de novembro de 2013

STF deixa Estado em zona de conforto quanto à terceirização – Luciano Athayde Chaves

No início de novembro, o Plenário do Supremo Tribunal Federal voltou a tratar do problema da responsabilidade da Administração Pública nas hipóteses de inadimplência das empresas prestadoras de serviços, contratadas mediante licitação. O julgamento conjunto das Reclamações ns. 14996, 15342 e 15106, Rel. Ministra Cármen Lúcia, foi interrompido em razão de pedido de vista, formulado pela ministra Rosa Weber.

Em seu voto, a relatora “frisou que houve descumprimento da decisão do STF na ADC 16 e da Súmula Vinculante 10 pelas decisões contestadas. Além disso, o Poder Público não descumpriu obrigações; lembrou que, em duas das reclamações em julgamento, presume-se a culpa do Poder Público e, na terceira, atribui-se a ele a culpa ‘in vigilando’, porém sem prová-la”. Por fim, “observou que, na contratação de empresas, o Poder Público é atrelado à Lei de Licitações. Portanto, só são contratadas empresas que preenchem os requisitos fixados por essa norma. A mesma lei também leva o Poder Público, segundo ela, a se preocupar em exercer vigilância dos contratos” (cf. notícia publicada no portal do STF. Disponível em www.stf.jus.br. Acesso em 17.11.2013).

Na Ação Declaratória de Constitucionalidade n. 16, o Supremo Tribunal Federal assentou uma leitura restritiva quanto à possibilidade de se atribuir responsabilidade ao Estado em relação aos direitos trabalhistas não adimplidos pela empresa prestadora de serviços contratada. A decisão recebeu a seguinte ementa:

RESPONSABILIDADE CONTRATUAL. Subsidiária. Contrato com a administração pública. Inadimplência negocial do outro contraente. Transferência consequente e automática dos seus encargos trabalhistas, fiscais e comerciais, resultantes da execução do contrato, à administração. Impossibilidade jurídica. Consequência proibida pelo art., 71, § 1º, da Lei federal nº 8.666/93. Constitucionalidade reconhecida dessa norma. Ação direta de constitucionalidade julgada, nesse sentido, procedente. Voto vencido. É constitucional a norma inscrita no art. 71, § 1º, da Lei federal nº 8.666, de 26 de junho de 1993, com a redação dada pela Lei nº 9.032, de 1995 (Rel. Min. Cezar Peluso, 24.11.2010).

Em função desta decisão, o Tribunal Superior do Trabalho alterou seu enunciado de súmula n. 331, inserindo o item V, com a seguinte redação:

Os entes integrantes da Administração Pública direta e indireta respondem subsidiariamente, nas mesmas condições do item IV, caso evidenciada a sua conduta culposa no cumprimento das obrigações da Lei n.º 8.666, de 21.06.1993, especialmente na fiscalização do cumprimento das obrigações contratuais e legais da prestadora de serviço como empregadora. A aludida responsabilidade não decorre de mero inadimplemento das obrigações trabalhistas assumidas pela empresa regularmente contratada.

Com essa nova redação, portanto, firmou-se, pela verticalidade da decisão na ADC 16, o entendimento de que a responsabilidade do Estado não decorre da mera inadimplência, na medida em que o art. 71, § 1º da Lei 8.666/93 afasta essa responsabilidade, regra esta tida por constitucional. Daí porque somente em casos de apurado dolo da Administração se poderia cogitar a sua obrigação complementar de atender aos créditos trabalhistas dos trabalhadores terceirizados não pagos às épocas próprias.

Esse é, do ponto de vista jurídico, o “estado da arte” quanto ao tema.

Sucede que, como bem tem lembrado o dramaturgo paraibano/pernambucano Ariano Suassuna, há uma distância entre o “Brasil oficial” e o “Brasil real” que não pode ser ignorada por nenhum observador das relações sociais (e, por que não, sociojurídicas) em nosso país.

A terceirização nos serviços públicos vem crescendo a olho nu nos órgãos da Administração, com diversos efeitos colaterais. É possível até mesmo afirmar que, sem os trabalhadores terceirizados, a prestação de muitos serviços públicos poderia ser severamente comprometida atualmente.

Trata-se de um modelo preocupante, sob diversos olhares. Aqui, no entanto, gostaria de explorar apenas a relação entre a interpretação dada ao art. 71, § 1º, da Lei de Licitações, nos termos da ADC n. 16, e seus reflexos.

Creio que essa posição do STF deixa os órgãos da Administração numa extensa zona de conforto, uma vez que a permissão de que a licitação impregna esse processo de contratação de todos os anteparos possíveis não se sustenta.

Com efeito, a praxis na Justiça do Trabalho revela, com estupefação, que muitas empresas contratadas não têm o mínimo de idoneidade econômico-financeira para assumir a contratação de dezenas, centenas, até mesmo milhares de trabalhadores. Qualquer atraso nos repasses, muitas vezes até mesmo em função da falta de apresentação de certidões negativas, é motivo para deixar todos os trabalhadores sem o pagamento das remunerações naquele mês.

Logo, sob esse ponto de vista, a existência de prévia licitação não é, por si só, um escudo ou blindagem para afastar a responsabilidade subsidiária do Estado, na medida em que ele próprio não busca impor regras mais transparentes e eficazes para contratações mais sólidas, reduzindo não somente a inadimplência das empresas, mas também a sua própria responsabilidade.

Cautelas e garantias
No dia 16 de novembro, a ConJur publicou reportagem (clique aqui para ler) sobre o ajuizamento de uma ação civil pública pelo Ministério Público do Trabalho no Rio Grande do Sul com o fito de impor ao Estado daquela unidade da Federação obrigação de adotar maiores cautelas na contratação de empresas terceirizadas. Propôs, então: “que só contrate empresas com mínima capacidade financeira, que deposite quantia equivalente a dois meses do contrato de prestação de serviços; inclua, nas licitações e contratos, o provisionamento dos valores pertinentes ao 13º salário, férias e abono de férias e multa do FGTS por dispensa sem justa causa; e que faça o pagamento direto das verbas trabalhistas nos casos em que houver retenção do pagamento de faturas à empresa prestadora, em razão da inadimplência contratual ou falta de apresentação de documentos”.

Já se tem notícias de que o Poder Executivo, e também o próprio Conselho Nacional de Justiça, vem tomando providências no sentido de exigir mais garantias das empresas contratadas. O acréscimo da certidão negativa de débitos trabalhistas (CNDT) no rol dos documentos de comprovação de regularidade também se incorpora a esse esforço. No entanto, essas medidas ainda não se fazem sentir, até mesmo diante da superposição de empresas, mesclagem de sócios, uso de “laranjas” e outras tantas disfuncionalidades presentes neste ambiente da economia.

Assim, não logrando a Administração Pública a realização de contratos de terceirização mais eficazes, espraia-se por toda parte a inadimplência, elevando as estatísticas já estratosféricas de processos na Justiça do Trabalho e, mais do que isso, impondo um ônus a toda a sociedade.

Nessa perspectiva, a premissa da ADC 16, que vem de ser reafirmada em diversos outros julgados, é preocupante, na medida em que a mencionada “zona de conforto” se traduz em desestímulo na prospecção de meios que promovam: a) a redução da força de trabalho terceirizada na Administração Pública; ou b) a construção de mecanismos jurídicos aptos a reduzir a insegurança na execução dos contratos de terceirização firmados com a Administração Pública.

E essa “zona de conforto” ainda se cerca de maior envergadura quando o STF firma entendimento de que a responsabilidade do Estado não decorre da mera inadimplência, carecendo de comprovação de dolo para que seja judicialmente assentada, a partir da cláusula geral de responsabilidade do Estado (art. 37, § 6º, CF).

Sucede que essa exigência praticamente inviabiliza a afirmação da responsabilidade, uma vez que sua prova é difícil e, de fato, a hipótese mais comum é de culpa stricto senso, não de dolo.

Por certo que se atribuir responsabilidade suplementar da Administração, no que concerne aos contratos de terceirização, não me parece, em largo olhar, o caminho que trará maiores benefícios ao nosso país. Todo esse processo precisa ser repensado, pois o modelo atual oferece muitas facilidades para as contratadas e para o Estado contratante, frequentemente repousando sobre os ombros dos trabalhadores todo o ônus da inadimplência de remunerações e verbas rescisórias.

A situação só não é pior porque muitos trabalhadores continuam prestando serviços pelas novas empresas contratadas (em sucessivas contratações, ao largo de anos de prestação de serviços ao mesmo órgão público), reduzindo o impacto social e econômico do “sumiço” da empresa prestadora anterior.

Uma nota de curiosidade: esse processo é, do ponto de vista da identidade social, tão deletério, que, muitas vezes, o trabalhador não sabe sequer o nome da empresa que atualmente é responsável por sua contratação, já que foram tantas que se sucederam!

Assim, a ideia, assentada nos precedentes do STF, no sentido de que o Estado não descumpriu suas obrigações, já que honrou com o pagamento das cláusulas financeiras do contrato, é premissa argumentativa limitada, se buscamos sua legitimidade e correção em confronto com os fundamentos e objetivos da República (arts. 1º e 3º, CF), nomeadamente valores como dignidade da pessoa humana, trabalho, desenvolvimento nacional, bem comum, redução das desigualdades sociais e regionais, dentre outros.

A se concretizar, doravante, o entendimento do STF sobre a matéria, creio que essa “zona de conforto”, assegurado ao Estado quanto aos contratos de terceirização, acentuará a ineficácia desse sistema, recrudescerá a inadimplência e aumentará, sem uma solução eficaz, o número de processos na Justiça do Trabalho.

Considerando a experiência até aqui, essa nova pletora de processos, apenas contra a prestadora de serviços, despertará apenas interesse na fase cognitiva, pois o cumprimento de eventual tutela jurisdicional condenatória oferecerá tão somente despesas ao Poder Judiciário, em esforço potencialmente inútil de buscar patrimônio que não existe.

Creio que esse diagnóstico aprofundará ainda mais o abismo entre o “Brasil oficial” – neste caso, ditado pela licitação de terceirizações – e o “Brasil real”, estampado nas dezenas de milhares de ações judiciais decorrentes de todas as idiossincrasias que atualmente tingem esse modelo de contratação na Administração Pública.

A questão é responder à pergunta: esse é o caminho?

Luciano Athayde Chaves é Juiz do Trabalho, titular da 2ª Vara do Trabalho de Natal, professor da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Membro do Instituto Brasileiro de Direito Processual.

Revista Consultor Jurídico, 21 de novembro de 2013