7 de maio de 2015

Da tragédia ao pastelão: o ataque aos professores – Reginaldo Melhado

Tal como as balas de borracha, a mentira pode matar

A tarde do último dia 29 de abril foi-nos apresentada como simples acidente de percurso pelas mais altas autoridades do Estado. Não o foi. Milhares de pessoas foram atacadas por um colossal aparato militar com granadas de efeito (i) moral, bombas de gás lacrimogênio, disparos de balas de borracha – que, aliás, poderiam matar – e cassetetes de verdade, numa operação hollywoodiana que incluiu atiradores de elite, helicópteros, policiais à paisana e todo um arsenal de crueldades insanas.

Impedir protestos públicos é violação ao Estado Democrático de Direito. Desconsiderar o princípio da publicidade no momento mais seminal da democracia, a votação de um projeto de lei, é acinte à cidadania. A obliteração do exercício regular do direito de greve viola a Constituição. Essas nojosas repugnâncias, porém, foram ainda mais graves por duas razões.A primeira delas foi a identidade das vítimas. Não eram apenas pessoas impedidas de ir e vir nem simples nem cidadãos querendo ver uma votação. Tampouco trabalhadores apenas brigando por salários. Era sua professora, prezada leitora. Era o professor que partilhará com seus filhos a responsabilidade pela formação dos seus netos, estimado leitor. A professora que alfabetizou você. Educadores defendendo a educação.

O outro motivo sórdido foi a farsa que se seguiu à tragédia. Tal como as armas de destruição em massa do Iraque, ou como a acusação ao ETA pela explosão de Atocha, ou ainda como ridícula versão do atentado comunista no Riocentro, figuras pusilânimes puseram-se a justificar a violência falando em “infiltrados”. Como o discurso parecia não quadrar com o sangue dos feridos na tela da TV, o secretário de Segurança convocou a mídia e exibiu vídeo mostrando grupos de vândalos atuando com alegada violência.

Curioso notar que esses supostos infiltrados foram filmados pela KGB araucariácea e, portanto, deveriam ter sido detidos facilmente. Que fizeram os policiais? Prenderam estudantes inocentes.

O vídeo montado traz pessoas usando máscaras cirúrgicas, lenços e camisetas para respirar em meio à fumaça do bombardeio. Foram mostradas como “black blocs” pelo governo (imaginando que nós, além de idiotas, fôssemos todos daltônicos). Mas os supostos artefatos explosivos nunca explodiram nem mesmo na contrafação cenográfica do vídeo. Nele o grupo que prepara as “bombas” são na realidade estudantes de Química e uma professora de Enfermagem da UEL. Eles tentavam (com bicarbonato de sódio, antiácido, compressas e quejandos) improvisar algum lenitivo para a irritação da pele e a dor dos feridos. Não houve corpo de delito: nem um mísero Coquetel Molotov foi apreendido.

A montagem-pastelão exibida pelos serviços de (des) inteligência não traz sequer uma mísera explosão causada pelos “infiltrados”. Nem um incêndio. Nem uma chama sequer. Só as bombas dos militares, pagas com o seu dinheiro de impostos, explodiam contra professores.

Governantes alguma vez elegem-se mentindo. Às vezes, até governam sob a mentira e enganam a todos por algum tempo. Mas, como disse um republicano famoso do século 19, não podem enganar toda a gente o tempo todo. Tal como as balas de borracha, as mentiras podem matar.

REGINALDO MELHADO é doutor em Filosofia Jurídica, Moral e Política e professor da Universidade Estadual de Londrina.

Artigo publicado no jornal Folha de Londrina de 07/05/2015